5 de novembro de 2014

O OLHAR DO POETA

Roberto de Queiroz* 
De acordo com o poeta Manoel de Barros, é possível tirar poesia até do esgoto. Augusto dos Anjos, nesse contexto, palavreia de maneira similar. Segundo ele, o beijo é a véspera do escarro.


“O que se depreende [...] [dessa expressão] não é o sentido frio do dicionário da palavra escarro, mas a grande verdade da vida e que existem pessoas que beijam outras com um beijo traiçoeiro, como Judas, que beijou Cristo para, em seguida, entregá-lo à prisão. [...] Para retratar essa realidade, o poeta diz que o beijo (a parte boa) antecede a parte má (o escarro). Ninguém perguntou, mas ele responde. É assim o mundo visto pela ótica pessimista de quem escreve, embora seja bem mais conhecido dizer que o poeta só fala de amor. O certo é que a tradição não liga muito a ideia de esgoto à poesia” (Admmauro Gommes, Intradução poética).

São lúcidos os comentários acima. São perfeitamente possíveis tanto haver poesia no esgoto quanto à proximidade entre beijo e escarro. Não no sentido literal (denotativo), mas no sentido literário (conotativo) da palavra. O beijo de Judas ilustra muito bem a linha de raciocínio de Admmauro. Afinal, “o que realmente caracteriza a poesia é o fingimento. Observemos, por exemplo, a primeira estrofe do poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente.” Esses dois últimos versos revelam claramente que o poeta não anula a existência de uma dor real, mas a dor fingida, a dor que figura no poema, assume uma característica própria e atua com mais intensidade que a dor real” (1).
De resto, vale salientar que certos autores definem a poesia como ficção: “Poeta, escreveu Jonson, grande dramaturgo inglês, contemporâneo de Shakespeare e um dos homens mais cultos do seu tempo, é, não aquele que escreve com métrica, mas o que finge e forma uma fábula, pois fábula e ficção são, por assim dizer, a forma e a alma de toda obra poética ou poema.” Mas, conforme assegura Manuel Bandeira, “é evidente que a poesia pode nascer também em pleno foco da consciência, e portanto atuar de maneira claramente apreensível. [...] Afinal em poesia tudo é relativo: a poesia não existe em si: será uma relação entre o mundo interior do poeta, com a sua sensibilidade, a sua cultura, as suas vivências, e o mundo interior daquele que o lê” (2).

P. S. – Citações minhas: (1) em “O poeta e a poesia”; (2) em “Meus versos livres e soltos”.
(Artigo publicado no jornal Gazeta do Oeste, Mossoró/RN, 30/10/2014, Opinião, p. 2)

* Professor e escritor. Autor de “Leitura e escritura na escola: ensino e aprendizagem”, Livro Rápido, 2013, entre outros. 



Um comentário:

  1. A inspiração para a formulação do poema é totalmente singular e transcorre das mais inusitadas situações, não se deve esperar que venha de coisas boas, contudo as ruins inspiraram e tornam-se obras surpreendentes... O poeta tem a habilidade de transformar atraves das palavras aquilo que vulgarmente seria algo pessimista .

    Romélia Milânia 1º Periodo - Letras.

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